- Povo que hoje choras por mim, não o
faças mais.
Já não é preciso.
Agora estou em paz. O mundo perfeito que
procurei está à minha frente. Não há castelos de princesas da Disney, mas há
campos infinitos e generosamente bem tratados. Há árvores frondosas e flores de
todas as cores. Há aves do céu que suportam o meu voo. Há um arco-íris de
esperança e há braços que se estendem ao meu redor e me oferecem coroas de
flores. São primaveris e brancas tal como as asas que recebi mal aqui cheguei.
Para
trás deixei os maus tratos, as palavras ríspidas com que aprendi a conviver, os
gestos desagradáveis que me lembravam, todos os dias, de que não era bem-vinda.
Para
trás ficaram os gritos, as bofetadas, as feridas maltratadas, os olhares
zangados e os empurrões acostumados...
Para
trás, ficaram as histórias de encantar que me levaram a acreditar em fadas e em
lares e em gente bem formada.
Para
trás ficou o retrato da menina mal-amada.
As
poucas histórias que li fizeram-me sonhar com um final feliz. Mas a verdade é
que a minha realidade nunca foi muito feliz. Eu insistia em rir, em brincar e
em cantar alto, era a minha forma de amar. Por vezes, escolhia a solidão. Era
minha amiga e compreendia a minha emoção.
Continuava
a acreditar que alguém existia para me amar. A cegonha não podia ter-se enganado
quando me oferecera para estar ao vosso lado. Viera de Paris e como muitas
outras trouxera-me no bico e deixara-me ali. O casal iria ficar feliz!
Mas
agora, aqui, sei que a Dona Cegonha fizera a entrega errada. Enganou-se na casa,
trocou os embrulhos, o casal nunca estivera apaixonado e esta nunca foi a minha
verdadeira morada. Como poderia eu ter sido amada?
Eu
não lhes estava destinada.
Estes
pais que me acolheram esperaram um ser ausente e perfeito. E eu ocupava espaço,
chorava, falava, ria e tinham de cuidar de mim.
A
minha missão era fazê-los felizes, mas agora sei que nunca foi assim. Cresci
entre casas, famílias ausentes, estranhas e descontentes. Por isso, eu era uma
menina diferente.
Conheci
a Mãe e quando quiseram que eu tivesse um Pai o meu coração soluçou um ai…
Era
um estranho, desumano, um anjo negro que trai.
Por
isso parti, fugi, porque era ao pé de ti, mãe, que eu era feliz.
Mas
voltei e nunca mais ao meu verdadeiro lar regressei.
Que
mãe deixa partir a filha quando sabe que ela morre de saudades dela e tem medo
do pai?
Que
mãe não acredita nos hematomas que ela traz e continua a viver em paz?
Brincadeiras
tontas? Quedas? – desculpam.
Inconsciência.
Sim, a tua, mãe.
Voltei
à casa onde era infeliz e onde vivia o monstro que me atormentava todos os dias
com palavras amargas, rispidez e sem cortesias.
Voltei
para nunca mais te ver, mãe. O telefone nunca tocou e o mundo lá fora não me
escutou.
O
monstro não teve piedade dos meus gritos nem dos meus lamentos. O monstro não
se comoveu quando me viu queimada e doente. O monstro mandou calar-me quando,
então, delirava. O monstro não acreditou nas minhas dores. E eu perdi a vontade
de viver. Secaram-se-me as lágrimas e rezei para que um anjo de Deus me levasse
dali.
“-
Pai, porque me abandonaste? – ouvi.”
E
um raio de luz trespassou a janela que iluminava o que me servia de quarto: o
sofá da sala onde jazia.
Juro
que ao meu lado se sentou um homem vestido de branco. Era jovem e o seu rosto
doce e sereno tranquilizou-me. Sarou as minhas feridas e deixei de ter medo.
Aconchegou-me num abraço que nunca tinha recebido e embalou-me com ternura. Os
seus olhos eram pura doçura.
Para
trás ficou a família que nunca me amou.
Para
trás ficaram os teus gritos, a tua ira, a tua pancada, a tua fúria desnivelada,
a tua desumanidade, pai cruel.
Para
trás ficou quem não velou o meu sono intranquilo.
Para
trás ficaram as penas do purgatório.
Para
trás ficou o mundo insensível, de faz de conta que destruiu a minha inocente
infância…
Para
trás ficou o que supostamente fui ou me deixaram ser.
Por
isso, gente da Terra, que chorais por mim, acalmai a vossa dor e chorai,
antes, por vós e protegei os vossos filhos. Eu estou bem e segura. Sou uma
nova criatura.
A
Dona Cegonha voltou a recolher a encomenda, a carta que não fora registada e,
entregou-a, finalmente, na sua verdadeira morada: o Céu, onde não me falta nada
e onde sou, verdadeiramente, amada.
(Celina
Seabra)
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