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Madrugada escura

Encosta a porta! Não deixes entrar a madrugada de Outono!

Observo o que pouco se vislumbra.
A porta está aberta e Ela já começou a entrar.
É enorme! As sua saia volumosa ocupa quase todo o espaço e traz mistério.
Quero olhá-la nos olhos, mas não os encontro. São fugidios, quase tímidos. As estrelas apagaram-se e deixaram uma madrugada cinzenta, ainda muito vestida de carvão. Parece trazer consigo os pesadelos do mundo.
Ocupou a minha alma e está mais pesada.
Não gosto, porque sabe-me a tristeza e eu quero - a dali p'ra fora.
Recuo.
Agora só somos toque, paradas à frente uma da outra.
Os seus olhos são pontinhos de mendiga.
Está só.
Abri-lhe a porta e ela entrou, mas não é perscrutadora nem exigente.
O seu traje enorme, de dama antiga desmazelada, incute cautela. Toda ela é mistério e está sedenta para encontrar uma amiga e narrar as suas histórias.
Mas a mim sabem a mistério, mágoa e solidão.
Quero uma madrugada rósea, primaveril, com trinados de pássaros e zumbidos de insetos.
Quero - a vestida de flores e com cheiro a árvore.
Quero outrar- me na alegria do astro que traz consigo e apaga as estrelas com beijos de luz.
-Compreenda, D. Madrugada, abro-lhe a porta, deixo - a passar, mas não posso tocar-lhe. Hoje não quero entristecer.


(Celina Seabra)



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