Chegara de França, país que a
recebera, que a acolhera e lhe permitira a sobrevivência e a promessa de um
futuro mais risonho e, financeiramento, mais desafogado.
Era pequenina, de cabelos escuros,
onde alguns cinzentos já apareciam.
Teria cinquenta anos?
Menos?
Sinceramente, não sei. Na altura, a
idade para mim, não era importante.
Recordo-a naquela casa que hoje é
minha, à entrada da porta, onde uma orquídea de cor azul-céu, era saciada,
quase diariamente, pela água que o meu avô, homem sensível, não esquecia de lhe
colocar.
Pequenina, branquinha ( no momento, “
brancura era formosura” e ela seguia à risca o adágio popular!), de pele mimosa
– herança que terá passado às filhas e a alguns netos), vigiava o horizonte,
numa forma de se sentir viva, presente, num mundo fechado, que ocupava apenas
porque Deus mandara. Vivia da Fé, da Concórdia, da Justiça, da Simplicidade, da
Humildade que idolatrava e apregoava.
Aparentemente, era simples. Vestia de
escuro ( o azul que muito apreciava), cobria o cabelo com um lenço negro e
encobria alguma da sua vaidade feminina em trajes descomplicados e vulgares.
A máquina fotográfica deixava-a
nervosa, incomodada e antes da fotografia revelava alguma timidez, enquanto
ajeitava o cabelo e a saia que usava uns centímetros abaixo dos joelhos. Era
humilde – como eu disse – mas nestes gestos revelava a sua vaidade castrada de
mulher que fora, outrora, muito formosa e que agora encobria, em trajes que
pouco a favoreciam.
Hoje sei e adivinho que ela gostava
que lhe ajeitassem os cabelos que, teimosamente, lhe saíam fora do lenço.
Hoje sei que também gostava de um elogio, embora desse a
entender que já não o merecia, pois o seu tempo já passara…
Ah, se eu pudesse te abraçar agora,
te ajeitar, te tirar o lenço dos teus cabelos e mostrar-te, ao espelho, o quão
bonita eras! Dentro da singeleza, eras bela! Não usavas cremes, nem
maquilhagem, nem te enfeitavas com roupa talhada pela moda e, mesmo assim, a
tua pele era macia e as rugas quase não se viam no teu rosto maduro.
Amamentaste oito filhos ( três
rapazes e cinco raparigas) e perdeste três.
Um marcou-te e, também, ao avô, para
sempre. Era belo, loiro e já um menino… A morte roubou-vo-lo.
Mostraram-me que o amaram
perdidamente, pois a última noite que passaram com ele, colocaram-no no leito
conjugal, porque temiam que o menino passasse frio…
O corpo estava junto deles, mas a sua alma já partira
para um local longínquo. Porém, eles necessitavam daquele último contacto. Fora,
dentro da cumplicidade, a sua despedida.
Não sei se choraram muito, se
gritaram, se tomaram calmantes… Sei apenas que continuaram a viver.
A minha avó amava os filhos e
protegia-os quando o marido os acusava, meio embriagado e com a mente
entorpecida pelo álcool ( ainda no tempo áureo da mocidade!), talvez perdido em
memórias disformes e agressivas. Eram os seus meninos que estavam a ser
magoados e ele não tinha o direito de os maltratar. E se alguém podia levar
alguma pancada seria ela, quando os cobria a todos com o seu xaile.
Nunca a ouvi pronunciar um palavrão e
a única palavra zangada que direcionava ao meu avô era “ mau! És mau!” ( E eu
não achava o meu avô mau. Era um homem sensato que apresentava já alguns vícios
da atualidade.)
A minha avó era pequenina, até
franzina, mas tinha uma força interior de colosso!
Eu admirava-a por aceitar com tanta
paciência a vida e por amá-la dentro da sua modéstia. Nunca a questionara,
penso eu, e nunca me disse que achava a sua vida monótona, rotineira ou
aborrecida.
Raramente a ouvi queixar-se de dor de
cabeça e nunca lhe ouvi falar em depressões.
Hoje, adulta, mais madura, entendo-a
tão bem!
Se antes não conseguia visionar-te
nas minhas recordações ou se a tua imagem insistia em fugir-me da mente, hoje passas pela minha
alma com muita clareza. E até sinto alguma “ inveja “ da forma como TU aceitavas
a vida, tal como ela era: sem questões, sem dúvidas, sem complicações, sem
filosofias. Vivia-la, apenas, e simplesmente, dentro dessa aceitação e
abnegação.
Eu sentia que os dias escorriam,
passageiros e melancólicos, pelas paredes pouco direitas daquela casa que pouco
agradava à minha avó, mas que era para o meu avô, o seu palácio. Era um “
casebre-palácio”, com poucas condições físicas, mas “ com ninhos no telhado”,
onde a limpeza interior persistia.
A minha avó sonhava partir dali,
daquela aldeia que pouco apreciava. Achava a gente bisbilhoteira, intrometida,
falsa – tal como eu, sobretudo quando desejamos apenas paz, sossego, harmonia…
Mas a avó Céu respeitava a autoridade
e as decisões do meu avô. Amara-o desde menina, desde a escola primária e
casara, contrariando a decisão arbitrária do pai, que era severo, e que achava
lhe pertencer para sempre a herança que lhe ficara da primeira mulher, que
morrera demasiado cedo. Levara-a a pneumónica. E, segundo o bisavô, esta herança não poderia
ser levada por qualquer um. Porque, então, o avô Manuel era qualquer um, sem
dote e sem futuro à vista.
Mas a minha avó casou! O teimoso do
pai ( meu bisavô) não compareceu no casamento, para desagrado do próprio pai
deste e da tia Glória.
Numa época em que contrariar os pais
e a família era desobedecer-lhes e cavar na relação dos mesmos o caos e a
separação eterna, a minha avó ( pequenina de tamanho e linda aos olhos dos que
a amavam) enfrentou o pai. E longe desses tempos austeros, acho a atitude dela
admirável. Seria eu capaz de desobedecer aos meus, quando eu tinha a idade dela?
A decisão da avó foi corajosa, não há
dúvida! E vêm-me à cabeça romances como o “Amor de Perdição”, “Romeu e Julieta”
e até “Tristão e Isolda”. Tentaram separá-la do seu grande amor, mas este
vencera-os em vida. E não foi preciso entrar na vida conventual ( também
pensara nela), nem o Amor banhou “ as suas aras” com sangue.
Ao lado do seu grande amor, passaria
mais de cinquenta anos.
Foram tempos difíceis. Nasceram os
filhos, quase distanciados de idades em dois anos, e viveram momentos menos
auspiciosos, em época de Ditadura Salazariasta, onde os alimentos eram
racionados e pouco beneficiados os que viviam na província, esquecidos de que
também eram cidadãos portugueses.
Foram vendidos terrenos ( parte da
herança da minha avó), porque a família crescia e precisavam de ser
alimentados. “ Sobrinhos de padre não podem andar descalços”, dizia aos filhos
a minha avó e numa família de padres, os métodos anticoncecionais eram
inadmissíveis e eram sinónimo de pecado. “ Crescei e multiplicai-vos!” – assim
dizia a Bíblia.
E assim se fez.
Entretanto, o avô Manuel teve de
partir.
Um dia, com um pequeno grupo, foi “ a
salto” e entrou num país do qual apenas ouvira falar como amigo dos que
emigravam. A língua era estranha, difícil de entender, mas os franceses foram
acolhedores. E afinal, ele não estava sozinho. Como ele, outros portugueses
labutavam por um amanhã melhor, distantes do país que os escravizara e os
impedia de falar livremente e de melhorar as finanças e as suas vidas.
Neste país – a França – encontrou o
equilíbrio; matéria-prima para a sobrevivência da família e, ali, reencontrou a
alegria de viver . Para sempre agradeceria à França a sua pensão de
sobrevivência, sobretudo quando a doença o impediu de trabalhar e os obrigou a
regressar.
Muitas histórias trouxe para contar.
Algumas, fantásticas e mais pareciam pequenos “ grandes milagres”. Como aquela
da senhora linda, loira que lhe entregou um bilhete, numa estação de caminhos
de ferro, onde estava doente e perdido. Quem seria ela? Uma mulher? Uma santa?
Uma alma caridosa? A mãe de Deus? O meu avô falava e recordava sobretudo, o
sorriso dela, a candura e a sua gentileza.
A minha avó partiu, então, da aldeia
que pouco amava e viajou, pela primeira vez, para um país estranho. A família
voltara a reunir-se, pelo menos o casal que prometera amar-se até à eternidade.
Alguns filhos juntaram-se-lhe. Outros já casados permanecera em Portugal ou,
então, emigraram para outros países.
Mas a França não agradou à minha avó.
Achou a gente estranha e foram poucas as palavras que aprendeu: o “ merci”, o
“lait”, a “ poubelle”… Esta última
marcou-me, pois passou a ser usada, sempre, na casa de Vide-Entre-Vinhas. “
Coloca isto na poubelle”, “ olha ali a poubelle…” Eu ainda não sabia francês,
mas esta palavra entrou dentro do meu vocabulário e tornou-se usual para aquela
família da Beira Alta.
São tantas as histórias que recordo
de ti!
É verdade que o avô é que era o “
contador de histórias “, mas TU estavas ali para comprovar ou desmentir o que
ele dizia.
Hoje tenho pena de não as ter
registado.
Permanecem na memória, algumas, mas a
outras falta-lhe os factos, os pormenores…
Era jovem e achava que o tempo não
passava e que estaria sempre a tempo de as voltar a ouvir com mais atenção.
Mas, afinal, a vida não é bem assim. Há um tempo certo para tudo e, por vezes,
as oportunidades perdem-se. Hoje procuro reconstituí-las, questionando os tios mais velhos. Hoje aguço os meus
ouvidos para não perder os pormenores, mas a verdade é que lhes falta aquela
pitada real que era conferida pelo casal que muito respeitei.
Felizmente, à medida que amadurecemos
( para não dizer envelhecemos) as
recoradações parecem vivificar e voltam à memória histórias, cheiros, sinais
que achávamos terem desaparecido e esquecido para sempre. Histórias que nos
parecem mágicas, mas que se cruzaram com o nosso destino. Histórias de pessoas
que fizeram parte de nós, cujo ADN corre no nosso sangue e que fizeram de mim,
de ti, aquilo que
HOJE somos.
(Celina Maria do Adro Morgado
Seabra)
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