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Passagem


Serenidade, era o nome daquele lugar. Não sabia ao certo como ali chegara, mas a dor que se instalara momentos antes na sua alma, fizera-a afastar-se do sítio que a enclausurava.
Ali, o silêncio persistia, mas era um silêncio mágico. Era um silêncio que tomava a forma de gente e a abraçava com carinho. Parecia dizer-lhe “ Como tardaste! Estava com tantas saudades tuas…”
 Podia ouvir vozes que sussurravam numa alegria contagiante e o ar sabia a amêndoa acabada de colher.
Olhou ao seu redor. Era um lugar recôndito, uma aguarela com cores primaveris. A sua textura suave, aveludada, aguçava-lhe o desejo de a tocar.
Maria teve receio de que tudo aquilo fosse fruto da sua imaginação. Possivelmente, desmaiara e estava a sonhar. A dor anterior fora muito forte e agora, fora do seu corpo de mortal, sonhava aquela paisagem. E ela queria continuar assim. Aquela dor incurável, que lhe corroía as entranhas e a fazia gritar e desejar o seu fim, era fera torturante. Assim, se estar ali, tranquila, serena, era fruto da sua imaginação, melhor para si.
Encorajou-se a caminhar por aquele chão atapetado de trigo dourado e aproximou-se da habitação destelhada, que ali ficara ao abandono. A porta, outrora imponente e de madeira escura, estava entreaberta. Coroava-a uma trepadeira roxa que se estendia até à janela superior. As paredes de granito pareceram-lhe familiares e uma lágrima escorreu-lhe pela face. Não era de dor, não. Eram lágrimas de alegria porque as memórias da sua infância feliz vieram ter consigo.
Maria conhecia aquele lugar. Estivera afastada dele muitos anos, mas nunca o esquecera. Ficara adormecido algures.
A casa chamava por ela e todas as recordações de outrora apoderaram-se dos seus sentidos.
As irmãs continuavam no seu trabalho. Rosa bordava. Ilda, afogueada, batia todos os tapetes; Graça cozinhava e a mãe – a sua mãe querida – embalava nos braços mais um pequenito que chegara tardiamente àquela simples família. Numa caminha improvisada dormia o José. Maria olhava maravilhada todo aquele quadro que pensara esquecido.
O que lhe acontecera? Porque estava ela ali?
A imagem que viu refletida no espelho pendurado num canto da pequena salinha refletiu a jovem que outrora fora: cabelos entrançados, da cor do trigo, adornavam um rosto esguio onde dois olhos castanhos – heranças outonais – bebiam sofregamente todo aquele amor que trouxera guardado no peito.
E viu-se petiz, de cabelo repuxado em dois totós, contemplando a borboleta Íris. Conversava com ela e Íris encarregava-se de a atrair para o seu mundo de fadas. Maria era uma sonhadora e uma aventureira. Ela era a pastora da casa e corajosamente guardara o rebanho de ovelhas quando o pai se ausentara. Tivera de emigrar. A vida do campo era dura e a família crescia. A ditadura castigava os pobres, mas não lhes retirara a coragem e os sonhos de lutarem por uma vida melhor, sem fome, sem medos, sem desigualdades.
“Meu querido pai!” – suspirou. – Estás ausente…
Beijou a mãe que lhe sorriu e abraçou-a.
“Que bom que chegaste, Maria! - a voz era doce. – Já te esperava há algum tempo.”
“ Perdi-me com as horas, minha mãe. – respondeu-lhe. – Íris levou-me ao campo das Fadas e elas quiseram fazer-me uma festa.”
“Por isso te ofereceram essas asas, Maria?” – a mãe contemplava-a embevecida.
Maria olhou para si. Só agora reparava em duas asas cintilantes que faziam parte do seu corpo. Mas não eram asas de borboleta coloridas. Eram asas de anjo: alvas, leves e polvilhadas de estrelas.
No seu colo reparou em uma folha branca e nas palavras que ela guardava.
“Bem vinda ao Céu, Maria!”
Só então percebeu porque as dores tinham desaparecido. A sua alma libertara-se do seu corpo enfermo e entrara num mundo inatingível pelos humanos. Ela fazia parte daquela aguarela. Os seus olhos encovados voltaram a adquirir o brilho juvenil e compreendeu que estivera nos braços do Criador. Fora o silêncio que a abraçara quando ali chegara.
Subiu a escadaria que levava ao pequeno quarto que partilhava com as irmãs. Estava intacto. As camas decoradas com colchas de renda branca. A cadeira onde repousava um vestido feito de estrelas deixou-a extasiada.
“Veste-o.” – O silêncio pediu-lhe.
Era o seu traje cerimonioso. O vestido que é entregue aos anjos que sofrem na Terra.
Maria recordou os filhos que deixara para trás a chorar e rezou por eles. Despediu-se do companheiro de vida. Abençoou os netos e pediu a Íris que em todos os solstícios enviasse borboletas àqueles que tanto amara.
Já não chorava. Não podia. A vida continuava agora ali, na sua casa, num lugar onde a serenidade e a alegria seriam os ingredientes do seu dia, da sua verdadeira vida eterna.
E um dia, estaria também ela ali, naquela casa onde brincaram também os seus filhos, para os receber quando se retornassem a ver.



(Celina Maria do Adro Morgado Seabra)


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