AVÓ
Lembro-me dela, já eu era uma menina de seis ou sete anos
de idade.
Chegara de França, país que a recebera, que a acolhera e
lhe permitira a sobrevivência de um futuro mais promissor, cauteloso…
Era pequenina, de cabelos escuros, onde alguns cinzentos
já apareciam.
Teria cinquenta anos? Mais? Menos?
Recordo-a naquela casa que hoje é minha, à entrada da
porta, onde uma hortênsia de cor azul-céu, era saciada, quase diariamente, pela
água que o meu avô, homem sensível, não esquecia de lhe colocar…
Pequenina, branquinha ( no momento, “ brancura era
formosura” e ela seguia à risca o adágio popular!), de pele mimosa – herança
que terá passado às filhas e a alguns netos), vigiava o horizonte, numa forma
de se sentir viva, presente, num mundo fechado, que ocupava apenas porque Deus
mandara. Vivia da Fé, da Concórdia, da Justiça, da Simplicidade, da Humildade
que idolatrava e apregoava.
Aparentemente, era simples : vestia, sobretudo, de escuro
( o azul que muito apreciava), cobria o cabelo com um lenço negro e encobria
alguma da sua vaidade feminina em trajes simples e vulgares.
A máquina fotográfica deixava-a nervosa, incomodada e
antes da fotografia revelava alguma timidez enquanto ajeitava o cabelo e a saia
que usava uns centímetros abaixo dos joelhos. Era humilde – como eu disse – mas
nestes gestos revelava a sua vaidade castrada de mulher que fora outrora muito
formosa e que agora tentava encobrir em trajes que pouco a favoreciam.
Hoje sei e sinto que ela gostava que eu lhe ajeitasse os
cabelos que por vezes lhe saíam fora do lenço…
Hoje sei que também
gostava de um elogio, embora desse a entender que já não o merecia, pois o seu
tempo já passara…
Ah, se eu pudesse te abraçar agora, te ajeitar, te tirar o
lenço dos teus cabelos e mostrar-te ao espelho para te contemplares e veres o
quão, ainda, eras bela!
Amamentaste oito filhos ( três rapazes e cinco raparigas)
e perdeste três.
Um marcou-te e também ao avô, para sempre. Era belo, loiro
e já um menino… A morte roubou-vo-lo.
Mostraram-me que o amaram perdidamente pois a última noite
que passaram com ele, colocaram-no no leito conjugal, porque temiam que o
menino passasse frio… O corpo estava junto deles, mas a sua alma já partira
para um local longínquo…
Mas a vida continuou.
Amava os filhos e protegia-os quando o marido os acusava,
meio embriagado e com a mente entorpecida pelo álcool ( ainda no tempo áureo da
mocidade!), talvez perdido em memórias disformes e agressivas…
Mas para a minha avó eram os seus meninos que estavam a
ser magoados e ele não tinha o direito de os maltratar.
Nunca a ouvi pronunciar um palavrão e a única palavra
zangada que direcionava ao meu avô era “ mau! És mau!”
A minha avó era pequenina, até franzina, mas tinha uma
força interior de colosso!
Eu admirava-a por aceitar com tanta paciência a vida e por
amá-la dentro da sua simplicidade… Nunca a questionara, penso eu, e nunca me
disse que achava a sua vida monótona, rotineira ou aborrecida.
Raramente a ouvi queixar-se de dor de cabeça e nunca lhe
ouvi falar em depressões.
Hoje, adulta, mais madura, entendo-a tão bem!
Se antes não conseguia visionar-te nas minhas recordações
ou se a tua imagem me fugia da mente, hoje passas pela minha alma com muita
clareza. E até sinto alguma “ inveja “ da forma como TU aceitavas a vida: tal
como ela era… sem questões, sem dúvidas, sem complicações, sem filosofias…
simplesmente a vivias, porque o importante era viver assim, com essa aceitação
e abnegação cada um dos teus dias.
Eu sentia que os dias escorriam, passageiros e
melancólicos, pelas paredes pouco direitas daquela casa que pouco agradava à
minha avó, mas que era para o meu avô, o seu palácio. Era um “
casebre-palácio”, com poucas condições físicas, mas “ com ninhos no telhado”,
onde a limpeza interior persistia.
A minha avó sonhava partir dali, daquela aldeia que pouco
apreciava.
Achava a gente bisbilhoteira, intrometida, falsa – tal
como eu, sobretudo quando desejamos apenas paz, sossego, harmonia…
Mas a avó Céu respeitava a autoridade e as decisões do meu
avô. Amara-o desde menina, desde a escola primária e casara, contrariando a
decisão arbitrária do pai que era severo e que achava lhe pertencer para sempre
a herança que lhe ficara da primeira mulher que morrera demasiado cedo… E esta
herança não poderia ser levada por qualquer um…
Mas a minha avó casou! O teimoso do pai ( meu bisavô) não
compareceu no casamento.
Numa época em que contrariar os pais e a família era um
caos, a minha avó ( pequenina de tamanho e linda aos olhos dos que a amavam)
enfrentou o pai!
Ao lado do seu grande amor, passaria mais de cinquenta
anos.
Foram tempos difíceis. Nasceram os filhos, quase
distanciados de idades em dois anos, e viveram momentos menos auspiciosos, em
época de Ditadura Salazarista, onde os alimentos eram racionados e pouco
beneficiados os que viviam na província, esquecidos de que também eram cidadãos
portugueses.
Foram vendidos terrenos ( parte da herança da minha avó)
porque a família crescia e precisavam de ser alimentados. “ Sobrinhos de padre
não podem andar descalços”, dizia aos filhos a minha avó e numa família de
padres, os métodos anticoncepcionais eram inadmissíveis e eram sinónimo de
pecado. “ Crescei e multiplicai-vos!” – assim dizia a Bíblia.
Entretanto, o avô Manuel teve de partir.
Um dia, com um pequeno grupo, foi “ a salto” e entrou num
país do qual apenas ouvira falar como amigo dos que emigravam. A língua era
estranha, difícil de entender, mas os franceses foram acolhedores. E afinal,
ele não estava sozinho. Como ele, outros portugueses labutavam por um amanhã
melhor, distantes do país que os escravizara e os impedia de falar livremente e
de melhorar ao nível financeiro as suas vidas.
Neste país – a França – encontrou o equilíbrio, matéria
para a sobrevivência da sua família e reencontrou a alegria de viver .
Muitas histórias trouxe para contar e outras fantásticas
que pareciam mais pequenos- “ grandes milagres”. Como aquela da senhora linda,
loira que lhe entregou um bilhete, numa estação de caminhos de ferro, onde
estava doente e perdido. Quem seria ela? Uma mulher? Uma santa? Uma alma caridosa?
A mãe de Deus? O meu avô falava e recordava sobretudo, o sorriso dela, a
candura e a sua gentileza.
A minha avó partiu, então, da aldeia que pouco amava, e
viajou pela primeira vez para um país estranho. A família voltara a reunir-se,
pelo menos o casal que prometera amar-se até à eternidade. Alguns filhos
juntaram-se-lhe. Outros já casados permaneceram em Portugal ou então, emigraram
para outros países.
Mas a França não agradou à minha avó. Achou a gente
estranha e foram poucas as palavras que aprendeu: o “ merci”, o “lait”, a “
poubelle”… Esta última marcou-me” Passou a ser usada sempre na casa de
Vide-Entre-Vinhas. “ Coloca isto na poubelle”, “ olha ali a poubelle…” Eu ainda
não sabia francês, mas esta palavra entrou dentro do vocabulário usual daquela
família da Beira Alta.
São tantas as histórias que recordo de ti!
É verdade que o avô é que era o “ contador de histórias “,
mas TU estavas ali para comprovar ou desmentir o que ele dizia.
Hoje tenho pena de não as ter registado.
Era jovem e achava que o tempo não passava e que estaria
sempre a tempo de as voltar a ouvir com mais atenção. Mas, afinal, a vida não é
bem assim…
Felizmente, à medida que amadurecemos ( para não dizer envelhecemos) as recordações parecem avivar
e voltam à memória histórias, cheiros, sinais que achávamos que tinham
desaparecido e esquecido…
Histórias que nos parecem mágicas mas que se cruzaram com
o nosso destino.
Histórias de pessoas que fizeram parte de nós, cujo ADN
corre no nosso sangue e que fizeram de mim, de ti, aquilo que HOJE somos.
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